21 de mai. de 2010 CARNE COM GOSTO DE MEDO


O velho desceu as escadas com um saco de lona na mão. Estava fazendo o mesmo caminho de todas as noites, depois que fechava a casa para se recolher. A velha e grande casa possuía uma arquitetura que as mais recentes, preocupadas com a otimização de espaço, não tinham mais. Era um sobrado antigo e maltratado pelo tempo, mas percebia-se que tinha uma estrutura sólida e com detalhes que revelavam o bom gosto de quem o construiu, tais como o telhado com eira e beira, além dos azulejos trabalhados que revestiam as paredes com uma miríade de tons de azul. Como toda boa casa antiga, possuía um poço nos fundos e muitas plantas no quintal. Embora detentora de todos estes atributos, predominava no local um ar de melancólico abandono, justificado pelo fato de ter como único responsável pela sua manutenção um alquebrado senhor de pouco mais de 60 anos, dos quais os últimos 12 deles vinham sendo de reclusão quase completa. Há exatos 12 anos sua esposa, que então estava grávida, morrera ao dar a luz ao 1° filho do casal, depois de anos de tentativas frustradas de engravidar. Para todos os efeitos, o bebê havia morrido junto com a mãe, mas apenas o pai sabia da cruel realidade. Desde então, sua vida se resumia a trabalhar como marceneiro em sua própria casa, onde recebia pedidos sob encomenda, e em acompanhar com um misto de horror e piedade ao crescimento do seu filho Ezequiel.

O velho chegou ao fim das escadas que conduziam até ao porão, outra regalia dos velhos casarões. Este espaço, onde outrora fora apenas um local para guarda de matéria-prima, agora era a morada do seu estranho filho. O velho girou a maçaneta. A porta rangeu e se abriu lamentosamente, o que causou duas reações. A 1ª foi que a porta, ao se escancarar como uma boca obscena, liberou de seu interior um ar gélido e de odor indefinido. Um cheiro que lembrava terra, mofo e carniça ao mesmo tempo. O velho imaginava que um cadáver exumado certamente teria um cheiro similar ao que agora invadia suas narinas. A 2ª foi que o saco de lona que o velho trazia subitamente ganhou vida e começou a mover-se, como se o seu conteúdo estivesse vivo.

E estava.

- Oi, papai! – disse uma voz que vinha de dentro da escuridão – Já tava com saudades!

Era fácil perceber que era uma voz de criança, mas havia algo de estranho nela. Era mais aguda do que a voz de um menino de 12 anos deveria ser. Não que parecesse afeminada, muito pelo contrário. A impressão era que não era uma voz de gente. Era algo meio animal, como o guincho de um roedor.

- Olá, Ezequiel – disse o velho, que tateou a parede ao lado até encontrar o interruptor, acendendo próximo de si uma pequena lâmpada amarela que, longe de iluminar o local, apenas transformava o cenário, saindo do mais completo breu para uma penumbra sepulcral.

Com a parca luz era possível ver que o porão fora adaptado para acomodar o pequeno Ezequiel. Os estoques de madeira continuavam no lugar, mas ainda sobrava muito espaço, visto que a área do porão era quase tão grande quanto metade da área da casa. Logo após as madeiras, que ficavam perto da porta para facilitar o transporte, havia uma cama de solteiro, uma pequena mesa e duas cadeiras, todas construídas na própria oficina da casa (o garoto ajudou a construir boa parte dos móveis, mostrando que herdara as habilidades de carpintaria do pai). Havia também uma pequena lousa e alguns livros mais adiante, onde Ezequiel recebia aulas do pai, que já passara para o filho todo o pouco conhecimento que a escola havia lhe dado. Ezequiel gostava muito de ler, principalmente revistas em quadrinhos. Por fim, havia uma antiga televisão de 14’’ e, junto à parede no fim do porão, vários móveis antigos ou defeituosos, guardados para possíveis eventualidades, afinal, nunca se sabe quando se pode precisar do tampo de uma mesa ou da perna de uma cadeira.

- Eu trouxe o seu jantar, meu filho – disse o velho, sorrindo complacentemente e estendendo o saco sacolejante em direção às trevas do porão.

- Oba! – disse Ezequiel.

Não era possível ver o garoto que estava nos fundos do porão, na parte menos iluminada. O som leve de passos apressados precedeu a emersão do garoto de dentro da escuridão. A luz amarelada da lâmpada incandescente revelou uma sinistra silhueta de pouco menos de 1,60m, vestido com um calção preto e uma camiseta surrada. Tinha a cor da pele oscilando entre o azul e o cinza e em alguns pontos, como nos ombros e cotovelos, a pele tinha aspectos mais escuro e áspero, tal qual couro. Seus membros superiores eram finos e cumpridos, com as mãos indo abaixo dos joelhos. Seus dedos também eram longos e com unhas pontiagudas com as de um felino. O estranho corpo era todo coberto por uma fina e rala pelagem e não havia cabelos, cílios ou sobrancelhas. O rosto possuía um nariz muito arrebitado, de modo que era possível ver facilmente os orifícios das narinas. Os olhos eram assombrosamente grandes se comparados com o rosto, sendo 2 vezes maiores que o normal. A íris amarelada e pupila fendida davam uma aparência animalesca ao garoto, que sorriu com seus dentes serrilhados ao se aproximar do pai.

- O que você trouxe pra mim, pai?

Como que respondendo ao garoto, um miado saiu de dentro do revolto saco.

- Oba, pai! Adoro gatinhos!

- Não foi fácil pegar esse, Ezequiel. Mas como eu sei que você gosta, dei um jeitinho – disse o velho, afagando a cabeça do garoto, que lhe abraçava a cintura com genuíno carinho. O velho não sabia se seu filho era assim por causa de alguma doença rara, maldição ou castigo divino. Mas sabia que não cabia a ele questionar, afinal, ele era tudo que seu filho tinha. E depois da partida de sua esposa, o garoto também passara a ser o mundo do velho. Apenas uma coisa lhe preocupava, além de evitar que seu filho tivesse contato com outras pessoas, que iriam taxá-lo de monstro. Eram os nada convencionais hábitos alimentares de Ezequiel. Tão logo aprendera a falar e andar, já mostrava apetite para carne.

Crua.

No último ano, aprendera a caçar e comer os ratos que vez por outra aparecem pela casa. Ele passava a manhã toda no porão, visto sua sensibilidade ao sol. Mas quando o astro-rei se punha, o garoto subia para andar pelo grande terreno na casa. Foi nesses passeios que desenvolvera a habilidade de caçar. Por duas vezes conseguira pegar uma rolinha que pousara no chão do jardim em busca de comida. Ver o filho sorridente enquanto mastigava as vísceras das suas presas certamente chocara o velho pai. Até quando os muros daquela casa segurariam o garoto? Até onde iria a fome de Ezequiel? Mas acima de tudo estava o amor incondicional e a certeza de que o garoto aquilo não fazia por mal. Por isso, sempre que podia, o pai trazia-lhe algum animal para segurar o desejo de caçar do pequeno.

- Obrigado, papai! – disse Ezequiel, pegando o saco com suas mãos de dedos longos.

- De nada, garotão! Agora vou subir, filho. Já são quase 10 horas e eu tenho que acordar cedo para terminar a estante do seu Antônio. Você me ajuda?

- Sim, papai!

O velho olhou para o filho com carinho, mas seu semblante mudou ao perceber um detalhe. Entre as várias manchas antigas da rota camiseta que Ezequiel usava, havia algumas que se destacavam por serem recentes e detentoras de um vermelho vivo.

Sangue.

Na mesma hora, um pequeno rangido se fez ouvir no fundo do porão.

- Ezequiel, meu filho. Quantas vezes já te disse para não comer esses ratos do porão? Eles são sujos. Prometa que não vai mais fazer, tá certo? Senão não te trago mais nada vivo.

- Tá, pai. Desculpe – disse Ezequiel, fazendo cara de quem foi pego com a boca na botija.

- Ótimo. Agora vou dormir. Suba um pouco se quiser. Você não saiu daqui de baixo hoje.

- Tá certo, papai. Só vou jantar e aí eu subo!

- Certo. Ah! Lembra aquele carro que eu te disse que apareceu hoje de manhã na estrada aqui do lado? Aquele que tava abandonado e com pneu furado? Você acredita que o dono não apareceu? O delegado acha que é coisa de quadrilha que rouba carros pra fazer assalto e depois abandona. Disse que ele devia estar lá desde a madrugada.

- Nossa... Mas será que foi isso mesmo, papai?

- Não sei, filho. Mas eu não duvido. Tem muita gente ruim por aí. Nem a nossa cidadezinha escapa desse povo. Mas não precisa se preocupar. Nós estamos seguros aqui. Boa noite, filho.

- Boa noite, papai!

O velho voltou por onde veio e fechou a porta, deixando o garoto sozinho. Ezequiel abriu o saco e retirou um gato rajado de dentro. Era um gato ainda jovem, com menos de um ano de idade.

- Oi, gatinho. Desculpe, mas hoje eu não quero brincar com você – disse Ezequiel, pegando o gato e olhando-o nos olhos – Eu arranjei um amiguinho novo perto da estrada. Eu tava no telhado quando vi que o pneu do carro dele furou na estrada aqui pertinho! Aí eu fui lá rapidinho e trouxe ele pra cá! Ninguém me viu! Mas não diga pro papai, tá certo? Vai ser o nosso segredinho! – riu Ezequiel, fazendo sinal de silêncio para o gato, colocando o dedo indicador diante dos lábios. O garoto largou o gato no chão e foi até os fundos do porão, onde estava antes do pai chegar. Dirigiu-se para trás de uma velha mesa que estava deitada de lado.

- Desculpe a demora, amiguinho, mas é que meu pai veio me ver. E você quase que estraga tudo fazendo aquele barulho. Meu pai não pode saber que você está aqui!

Detrás da mesa havia um homem. Estava deitado com as mãos e pés amarrados e boca coberta por uma substância translúcida que o impedia de falar. Ezequiel passara cola de madeira na boca do homem, que estava acordado, mas muito debilitado devido às quase 24h em que estava naquela posição, bem como ao grande ferimento na parte externa da sua coxa esquerda, onde a calça fora rasgada e a carne dilacerada. Ao ver o garoto, o homem arregalou os olhos, mas já não tinha mais forças. Apenas as lágrimas que agora desciam pela suas faces davam noção do que o homem sentia naquele momento.

- Agora que papai foi dormir a gente pode voltar a brincar – disse Ezequiel, lambendo os lábios. O homem tentou gritar, mas não conseguiu. Tentou se mover, mas estava muito fraco e Ezequiel tinha muita força. Avançou por cima do homem e cravou os dentes do ferimento da sua perna, arrancando mais um pedaço de carne. Próximo deles, o gato rajado subiu em uma mesa e acomodou-se para dormir.

Ezequiel não quis comer gatinhos pelo resto da semana, o que deixou seu pai muito feliz.

1 comentários:

Blogs Record disse...

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